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Diagramação: Marco Scalzo
Diretora de Imprensa: Vera Luiza Xavier
Um levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) realizado no fim de 2020 mostrou que mais de 8,5 milhões de mulheres perderam seus empregos por conta da pandemia de covid-19. A participação feminina no mercado de trabalho é a menor desde 1990, quando elas representavam 44,2% da mão de obra - agora são 45,8%.
A participação massiva das mulheres no setor de serviços, como comércio, empregos domésticos, entre outros, acentuou ainda mais as distorções de gênero no mercado de trabalho. Mas a pandemia também escancarou outros dados absurdos, como o aumento de 22% nos casos de feminicídios, apontados em um levantamento do Fórum Brasiliero de Segurança Pública em 2020.
“A pandemia tornou mais visível, mais dramático, mais urgente aquilo que sempre existiu. Mas é claro que agora isso é muito mais visível. É bem visível que quem está morrendo são aqueles que sofrem mais discriminação, os que são os mais pobres”, explica a filósofa marxista, Silvia Federici.
Neste mês de março, Federici participou de uma série de debates organizados pela editora Boitempo, sob o tema: “Por um feminismo para os 99%”. À distância, via aplicativo de conversas, por conta da pandemia, Federici conversou com o BDF Entrevista para falar sobre o impacto da pandemia na vida das mulheres, a reorganização do movimento feminista e a análise do discurso marxista sobre as mulheres no mercado de trabalho.
Em diversas obras, Federici analisa a questão do trabalho reprodutivo feminino, que revela como as ocupações reservadas às mulheres não se limitam apenas ao mercado formal e informal. As jornadas domésticas, o cuidado com os filhos e com os idosos , em geral não remunerados, acentuam a desigualdade de gênero.
E o prognóstico para 2021, ou mesmo em uma eventual pós pandemia, em 2022, não são animadores. As perdas do mercado global e as crises econômicas espalhadas pelo mundo, podem ter efeito ainda mais severo para as mulheres.
“Com certeza é um momento de reviravolta, e não há dúvida que a estrutura corporativa e os governos vão usar. A Naomi Klein estava certa, eles sempre vão usar as crises para reestruturar as coisas que já estavam planejando, mas não podiam fazer nos supostos tempos normais”.
“Mas agora vem uma crise, e o que antes era impensável, inadmissível, eles vão tentar levar à frente. E acho que, especificamente, no caso das mulheres, muitos empregos retornarão para o âmbito domiciliar, e agora vão pedir para que as mulheres sejam o amortecedor da crise, e ficar em casa com três empregos de tempo integral, cuidar das crianças, da escola, da internet, cuidar das tarefas domésticas etc’.
Confira alguns trechos da conversa:
Brasil de Fato: Gostaria de começar nossa conversa falando sobre a pandemia. Ela não é a mesma para todos. Como a senhora tem visto esse período?
Silvia Federici: A pandemia tornou mais visível, mais dramático, mais urgente aquilo que sempre existiu. As pessoas sempre morreram. Mas é claro que agora isso é muito mais visível.
É bem visível que quem está morrendo são aqueles que sofrem mais discriminação, os que são os mais pobres. Podemos dizer que o fator determinante já existente é o racismo, o fator já existente é a discriminação baseada na idade, o fator já existente é o capitalismo, sabe? Uma sociedade que não se importa se as pessoas vivem ou morrem, ou melhor, se importa que a gente viva apenas para nos fazer trabalhar. Então, eu acho que essas questões são realmente fundamentais, e esse é o momento para mudar.
Você costuma dizer que o feminismo deveria estar na vida cotidiana das mulheres, não apenas nas ruas, nos atos, mas na reestruturação da vida. Qual é a barreira para expandir o feminismo para todas as mulheres?
A questão do feminismo, para mim, é uma questão muito profunda. É uma questão para todos os setores da população, para quem a experiência de vida está sendo reproduzida pelo cotidiano. E claro que nem toda mulher, mas algumas, têm acesso a muitos recursos, e historicamente tiveram outras mulheres trabalhando para elas. Mas, em grande parte, a maioria das mulheres têm essa vivência, de criar os filhos, de trabalho doméstico, e mesmo se você não tem filhos, você sempre está cuidando das pessoas, dos seus parentes etc.
Tem a questão do corpo, o fato que historicamente mulheres tiveram que enfrentar instituições governamentais que tentaram controlar nossa sexualidade, nossa capacidade reprodutiva, as relações com os homens, a experiência de subordinação, todas essas experiências estão formando não apenas o campo do feminismo, mas o campo das coisas que todas as mulheres lidam no dia a dia.
Logo, estou dizendo que o feminismo aborda uma amplitude de questões que são centrais para a maioria das mulheres, e que não têm sido consideradas como importantes, ou questões políticas pelos movimentos tradicionais de esquerda e de justiça social. Isso pra mim é seu caráter revolucionário, já que reproduzir a vida cotidiana, é fundamental para qualquer outra atividade, é o sistema de apoio de todas as outras atividades.
Durante a pandemia, parte da população viveu esse novo estilo de vida, o home office. Mas para as mulheres, esse tipo de trabalho representa uma jornada brutal, às vezes dividida em três ou quatro jornadas diferentes. Qual é o risco de pandemia para todos os avanços que vimos na última década ou nos últimos cinco anos?
Eu acho que precisamos de uma enorme transformação da vida social, e obviamente eu espero que a situação da covid, vendo o quão profunda é a crise, o quão profunda é a crise para as vidas das mulheres, não só para as mulheres, mas, acima de tudo, a crise reprodutiva que a crise da covid escancarou, pode ser um ponto de inflexão, um ponto pivô, no sentido de promover novos movimentos, novas reivindicações, novas maneiras de se mobilizar. Tudo precisa mudar.
E acho que, por muitos anos, e como muitos outros venho argumentando que a mudança precisa começar, especificamente quando falamos do movimento feminista, tem que começar com a questão reprodutiva.
Isso porque já vimos que, particularmente nos anos 80 e 90, as mulheres foram trabalhar fora do domicílio. Cada vez mais as mulheres estão envolvidas em quase todo tipo de trabalho pago, ou trabalho informal. Com certeza, muitas mulheres saíram do âmbito domiciliar e, ao mesmo tempo, pelo fato de a situação domiciliar continuar não resolvida, você ainda tem crianças para cuidar, você ainda tem pessoas ficando doentes, você ainda tem pais idosos etc, entende?
Então, em qualquer lugar que as mulheres vão, elas não podem negociar condições, elas vão na condição de não terem poder. Logo, obviamente, precisamos de uma grande transformação, precisamos construir uma sociedade, não construir em torno da lógica da exploração, não construir em torno da lógica da hierarquia, hierarquia social, da desigualdade, isso é fundamental.
Creio que precisamos construir uma sociedade na qual, em primeiro lugar, teremos uma redistribuição massiva da riqueza social que apoie a reprodutividade de nossas vidas. Hoje em dia, muito da riqueza social gerada é utilizada para fins que impedem isso. Ela é direcionada ao militarismo, às prisões, à polícia, nós precisamos redirecionar.
Eu gostaria de ver um movimento feminista que se mobiliza, que luta para fazer com que o Estado e as corporações reapropriem a riqueza social, e a coloque a serviço de nossas vidas. Ao mesmo tempo, iniciando um processo de reestruturação de nosso trabalho, reestruturar o trabalho doméstico, se distanciando da maneira como foi privatizado, da maneira como foi individualizado, que leva as pessoas, as mulheres, a enfrentarem suas crises sozinhas.
Precisamos de mais cooperação na reprodução das nossas vidas. E precisamos mudar como trabalhamos fora do domicílio, e o que está sendo produzido. Vamos liberar parte desse tempo, se você tem um trabalho fora de casa, aí corre para ir para casa, e se você está trabalhando fora de sua casa 12 horas por dia, você não tem tempo de encontrar outras pessoas, de discutir seus problemas, discutir sobre o que precisa ser feito, discutir sobre quais iniciativas precisam ser tomadas para verdadeiramente mudar as coisas.
Atualmente, vemos isso todo dia, eu acho que a covid criou uma abertura, é um momento de verdade, vemos quem são as pessoas morrendo, que as vítimas são aquelas mais afetadas pela desigualdade social. Também vemos que aqueles que morrem são os mais vulneráveis, que têm longas jornadas de trabalho, que não têm cuidado médico de verdade.
Eles sempre vão usar as crises para reestruturar as coisas que já estavam planejando
Em seu último livro impresso no Brasil pela editora Boitempo, a senhora analisa o equívoco de Marx sobre a ideia de trabalho hierarquizado, e de família. Essa ideia está em constante processo de mudança. A esquerda e o movimento feminista estão seguindo o ritmo dessas mudanças?
Eu acho que Marx ficou muito impressionado com o poder da industrialização, com o que a indústria seria capaz de fazer se existisse um Estado do proletariado, que pudesse utilizar a indústria para o bem da população. Ele ficou muito impressionado com a ideia de que a indústria poderia ser libertadora em nossa era, elevando o nível das atividades, tanto que acho que ficou cego à importância do trabalho reprodutivo.
É fato que durante a revolução industrial o trabalho doméstico foi reduzido drasticamente, porque muitas mulheres jovens estavam nas fábricas o dia todo. Ao mesmo tempo, não é verdade que o trabalho doméstico deixou de existir, mas Marx não enxerga isso.
No livro, eu mostrei que mesmo quando ele fala de procriação, ele fala de uma maneira muito neutra, ele não tem ideia que existe uma diferença, uma maneira diferente de abordar a questão para homens e mulheres, para a questão de procriação, particularmente no século 19, quando mulheres estavam morrendo de febre, parindo etc.
Logo, o trabalho reprodutivo no mundo está passando por um processo de transformação massiva. Hoje em dia, muito desse trabalho é realizado fora do domicílio e o capitalismo está lucrando com a comercialização do trabalho doméstico, fast food, lavanderias...pode escolher. A indústria do bem estar, por exemplo, quando eu saio em Nova York, em cada esquina tem uma academia. Isso faz parte da comercialização da reprodutividade.
Ao mesmo tempo, eu acho que a desvalorização do trabalho reprodutivo ainda existe. Por isso temos pessoas com vidas completamente consumidas pelo trabalho. E o problema também é que as empresas estão economizando muito, milhões e milhões, porque não são obrigadas a fornecer o tipo de infraestrutura que permite com que as pessoas saiam e trabalhem. Eles não providenciam nada, todo trabalho caseiro é feito de graça.
As pessoas pagam por essas coisas fora de casa, você tem que pagar pelo fast food, você tem que pagar pela lavanderia. Então, o capitalismo está jogando todo o trabalho de produção, o capitalismo entra e usa a mão de obra, a explora, acumula riqueza através da exploração e não paga, não paga pelo processo de construir essa mão de obra. Todo trabalho é feito gratuitamente, todo trabalho é feito através de pessoas pagando pela lavanderia etc., com seu próprio dinheiro.
Sendo assim, o custo de reproduzir a mão de obra é constante em todas as fases do desenvolvimento capitalista, todas as fases do desenvolvimento capitalista. Esse custo é jogado de volta aos próprios trabalhadores, e por isso que nossas vidas são tão miseráveis, porque a gente nunca teve dinheiro, porque o pouco dinheiro que as mulheres têm, se elas estão trabalhando etc., aí têm um pouco de dinheiro, mas elas ainda têm que pagar o transporte, têm que pagar a comida, têm que pagar para cuidar dos filhos, têm que pagar para alguém cuidar de alguém que fica doente etc., etc. E as vidas que são consumidas, o tempo é consumido pelo trabalho.
E a senhora acredita que as perdas do mercado global durante a pandemia devem colocar em um horizonte próximo um aprofundamento das políticas neoliberais?
Com certeza é um momento de reviravolta, e não há dúvida que a estrutura corporativa e os governos vão usar. A Naomi Klein estava certa, eles sempre vão usar as crises para reestruturar as coisas que já estavam planejando, mas não podiam fazer nos supostos “tempos normais”.
Mas agora vem uma crise, e o que antes era impensável, inadmissível, eles vão tentar levar à frente. E acho que, especificamente, no caso das mulheres, muitos empregos retornarão para o âmbito domiciliar, e agora vão pedir para que as mulheres sejam o amortecedor da crise, e ficar em casa com três empregos de tempo integral, cuidar das crianças, da escola, da internet, cuidar das tarefas domésticas etc., etc.
E talvez em cima disso, algumas outras horas de trabalho. Então acho que é aqui que o movimento está não apenas resistindo a esses processos, mas de fato começando um processo de transformação. Começando a conectar, a construir uma ponte entre diferentes movimentos sociais, para que haja força para confrontar o Estado, porque senão, você está certo, porque senão, ao sairmos dessa pandemia, virá uma nova fase do capitalismo que vai ser ainda mais exploradora.
Vai de fato criar novas formas de controle e novas formas de divisão. Por exemplo, entre aqueles que se recusam a sair para trabalhar e aqueles que não têm escolha, já estamos vendo isso, aqueles que são obrigados a enfrentar todos os riscos que hoje em dia enfrentamos indo trabalhar em situações precárias e perigosas.
Então acho que este é um momento que vai ser decisivo, em relação a como a próxima fase vai ser, e me parece que o caminho é de os diferentes movimentos realmente se unindo. Realmente construir uma mobilização forte que engaja em níveis diferentes, em termos de confrontar políticas institucionais em um nível, começando com um movimento para a reapropriação da riqueza social. Por outro lado, também começar o trabalho no nível comunitário, reorganizar, construir com força.
Nós costumávamos falar sobre transformar nossas comunidades, de lugares que produzem mão de obra para o capitalismo, em comunidades de resistência, certo? Hoje em dia vou falar de comunidades de transformação, não apenas de comunidades de resistência.
Porém, precisamos criar infraestruturas, em nível comunitário, que nos ajudam a confrontar o Estado, confrontar os empregadores com mais poder, e com mais clareza sobre o que queremos. Eu acho que é muito importante que no último ano, nós temos visto, agora mais pelo Zoom, mas vimos nos Estados Unidos, inspirados na América Latina, o crescimento de assembleias populares.
Pessoas se reunindo em comunidades para tomarem todo tipo de decisão, sobre imigração, prisões, a questão da ajuda comunitária. Logo, criar espaços onde decisões coletivas podem ser tomadas é um aspecto, mas também criar mais infraestrutura.
Nós temos visto muita mobilização em torno da ajuda comunitária. As pessoas passam fome, nos Estados Unidos também. Diariamente ouvimos sobre milhões de crianças com fome. As pessoas não têm mais dinheiro, estão desempregadas há muito tempo.
O governo dá um pouco de dinheiro mas nunca é o suficiente. Muitas pequenas empresas faliram. Então tem existido muita ajuda comunitária, mas precisamos não estar apenas reagindo a emergências, nós precisamos aprender com as emergências, mas precisamos transcender as emergências, e começar a ver coletivamente o que precisa ser feito no nível comunitário.
Em seu livro mais recente, a senhora faz um pequeno desvio de rota em relação à grande maioria de suas obras para falar especificamente sobre o corpo feminino e o controle que a indústria exerce sobre ele. Como essa era do “padrão da beleza” tem afetado diretamente às mulheres?
As mulheres sempre souberam que, especificamente, quando saem do domicílio em busca de emprego, sua aparência vai ter uma enorme importância, muito mais que os homens. Para a mulher, estar bem vestida, ser bonita, ter uma aparência agradável, é um trabalho em si, porque elas são dadas a tarefa de servir o homem nessa capacidade, ser atraente, agradar o homem.
Isso é transferido para o suposto local de trabalho, e digo suposto porque a casa também é um local de trabalho, mas nunca é visto assim. As mulheres desenvolveram uma relação com dietas, vestimentas, academias, fitness.
Tudo isso, que é um trabalho tremendo, uma tremenda quantidade de dinheiro, e também é, em si, um tipo de alienação, você se sente alienada, eu conheço muitas mulheres que são alienadas de seus próprios corpos. Eu acho que escrevi sobre isso, você está sempre se olhando, observando seu corpo com um olhar de terceiros, o olhar do mercado. Claro que esse olhar, o que a mídia está dizendo sobre sua aparência, as modelos, você nunca se encaixa.
Eu acho que existe uma relação que as mulheres desenvolveram com seus próprios corpos que é um enorme empecilho. Isso é parte da luta, o movimento feminista chegou e disse, não, de jeito nenhum, nós não vamos aceitar essa disciplina.
Por outro lado, tradicionalmente, historicamente, homens não têm sido submetidos a esse tipo de disciplina. Isso tem sido um dos maiores campos de batalha para as mulheres.
Edição: Camila Salmazio