Quarta, 02 Dezembro 2020 13:38

Sim, o Brasil é racista. Mas 2020 nos traz uma reação de esperança

Almir Aguiar – Diretor da Secretaria de Combate ao Racismo da Contraf-CUT e militante do MNU - Movimento Negro Unificado Almir Aguiar – Diretor da Secretaria de Combate ao Racismo da Contraf-CUT e militante do MNU - Movimento Negro Unificado

Por Almir Aguiar

Não há expressão mais clássica que represente o racismo no Brasil do que negar que sejamos um país racista. A frase do vice-presidente da República, o General Hamilton Mourão, descendente de índio, e de Jair Bolsonaro, em reunião do G20, que negaram publicamente haver racismo no país, expressam esta ideologia de uma visão etnocêntrica branca, europeia, anglo-saxã, arcaica, de hierarquização de raças e culturas, que reproduziu por séculos, conceitos de que a civilização ocidental seria “civilizada” e índios e negros seriam “primitivos”, “bárbaros”. Este pensamento hegemônico culminou com o extremismo da eugenia nazista de Hitler, que buscava produzir uma seleção de raça superior baseada nas características hereditárias. A palavra “eugenia” deriva do grego, que significa “bem nascido”.

A morte de João Alberto Silveira Freitas, numa loja do supermercado Carrefour, em Porto Alegre, no Dia Nacional da Consciência Negra (20/11) não foi um caso isolado e o fato da vítima ser negra e pobre foi determinante. Alguém tem dúvidas de que se tratasse de um jovem branco, de classe média ou alta, de que o tratamento seria diferente, na pior das hipóteses um pedido para ele se retirar do recinto ou improvavelmente uma prisão se houvesse, de fato, um crime? As imagens mostram que João teve um desentendimento com uma caixa e em seguida, o mundo assistiu estarrecido a uma série de agressões e asfixia até a morte.

Há um ranço racista também nos que argumentam o fato de a vítima ter antecedentes criminais, o que não justifica a violência e o assassinato. E todos os dias, jovens negros são exterminados nas favelas e periferias. Como diz um dito popular, contra números não há argumentos. Dados do Atlas da Violência de 2020 reafirmam a gravidade do preconceito racial no país, que é estrutural. No Brasil, em 2018, 75% das vítimas de homicídio eram negras. Em dez anos (2008 a 2018) as taxas de homicídios apresentaram um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os brancos houve diminuição de 12,9%.

O racismo faz parte do processo civilizatório brasileiro. A miscigenação foi fruto da violência e do estupro de brancos europeus contra mulheres negras e índias. A discriminação faz parte de nossa rotina, está presente no mercado de trabalho, na média salarial, na diferença de condições de moradia e de saneamento básico das populações negras marginalizadas das favelas e periferias.

Mas novos ventos começaram a soprar em 2020: a reação popular nas ruas, praças e redes sociais contra a forma estúpida com que João foi assassinado mostram que cresce na sociedade o repúdio ao racismo e que, sim, vidas negras importam. As eleições municipais também trouxeram uma expectativa de que é possível mudar, lutar por uma nação justa, por igualdade de oportunidades e de que não podemos abrir mão das políticas sociais afirmativas e de inclusão da história, literatura e cultura negra nas escolas e universidades e da representação nos poderes democráticos constituídos.
Nas eleições municipais deste ano, o povo elegeu mulheres, trans e homens da comunidade negra. Um terço dos prefeitos e 44% dos vereadores eleitos são pretos ou pardos. Pode ser o despontar de novos tempos. Como nos EUA, em que a reação popular e ativa participação da comunidade negra nos protestos e nas eleições presidenciais varreram a extrema-direita preconceituosa, o Brasil começa a reagir ao retrocesso sem precedentes que vivemos na atual conjuntura, em todos os aspectos, econômicos, sociais e raciais, com a supremacia da política do ódio e da mentira que tirou o racismo do armário e se estabeleceu como forma de poder no Palácio do Planalto e ainda na maioria do Congresso Nacional.

Inspirados no legado da mártir Marielle Franco, o avanço da presença de nossa comunidade afrodescendente nas câmaras municipais e prefeituras este ano, a face do Brasil profundo, mostram que podemos reverter esta tragédia que vivemos e que podemos virar este jogo.
Porque não ser racista ainda é muito pouco. É preciso ser antirracista e reagir, como temos reagido. Sim, o Brasil é profundamente racista. Mas sim, é possível mudar e construir um país justo e igualitário e pôr fim a toda a forma de discriminação. E creio que começamos a fazê-lo, retomando os caminhos da busca pela justiça social. Apenas começamos. Mas já é um embrião. Um embrião de alento e de esperança.

Mídia