Terça, 28 Julho 2020 15:10

NELSON MATTOS PEDRA 96

Memórias de um Sargento sem milícias
José Eurides Queiroz José Eurides Queiroz

Nelson Sargento bateu a marca dos 96 anos sem deixar o samba cair. Conheci o Sargento em 1975. Ele estava com 55 anos. Foi na CEU (Casa do Estudante Universitário), levado por um dos moradores, o diagramador, ilustrador e revisor Inácio. O sambista nos pedia, aos estudantes, "vocês precisam me ajudar, o Cartola gravou seu primeiro LP com 65 anos, eu ainda tenho 10 pra gravar o meu". Decidimos apresentá-lo em um pequeno show no iniciante Teatro da CEU.

No dia marcado, apareceram Geraldo Babão, Ary do Cavaco, Luciana Rabello e seu irmão Rafael, então com 14 anos, os jogadores Afonsinho, Ney Conceição além de jornalistas, muitos estudantes e outros sambistas de quem não me lembro. Antes do show, Sargento foi levado com uma penca de pessoas para o Bar Apolo XI, na Senador Vergueiro.

Encheram a cara, os amigos embalando grandes planos de sucesso para o sambista. Quando retornaram ao teatro, a decoração, que uns malucos fizeram no palco com flores e espelhos, parece ter assustado o principal artista da noite. Isso, somado ao teor etílico da galera, produziu aquele vai ou não vai e o Sargento não subia àquele humilde palco.

Então o Miranda, jornalista da Luta Democrática, pegou o microfone e, amigo do compositor de "Samba, agoniza mas não morre" e mais umas duas centenas de sambas e marchinhas, começou a tecer loas a Sargento pra ganhar tempo. A plateia cobrava "canta Sargento, queremos Sargento".

Até que eu interferi com certa veemência e na condição de presidente da casa exigi que Miranda parasse de rolar o lero para que o homem cantasse. Quase apanhei dentro da minha própria casa.

Geraldo Babão chamou Jair do Cavaco, o pandeirista e deu um tom. Saiu um lá-lá-ri-lá-iá totalmente impossível de ser traduzido em qualquer acorde. Ele virou pro Jair "tá ruim né cumpade". Acertado o acompanhamento, Babão cantou e discursou: "Se esse negócio de direitos autorais funcionasse, eu já estaria milionário". A galera adorou. Eufórico, passou a cantar as meninas da PUC que o admiravam.

O impasse continuou, Luciana cantou uma musica do Cartola. Preocupado, Rafael Rabello foi falar com o Sargento. Sargento resolveu a parada indicando que o garoto Rafael subisse e tocasse. "Mas eu", recuava Rafael Rabello. "Você mesmo, tem todas as condições, insistiu, Sargento". O garoto arrebentou com "Abismo de rosas" (Dilermando Reis).

Quer dizer, foi Nelson Sargento quem lançou o violonista Rafael Rabello para o mundo.

Convém um parêntesis. Rafael tocava as grandes raízes para o violão. Depois das aulas com Meira, estava sempre com os baluartes, como Jair do Cavaco, Paulo do Violão, Nelson Cavaquinho e outros, pelo que os músicos o apelidaram de "moço velho", nas coxias, que fique bem claro.
Foi essa sua primeira apresentação em público.

Daquele show em diante, Sargento ganhou as gravadoras, a televisão, o cinema como ator; vendeu discos e quadros de sua arte em estilo primitivo. Tempos depois passou a limpo seu estremecimento de certas relações na Mangueira, onde foi um dos fundadores da ala de compositores. Hoje é um astro que nos enche de orgulho. Ora, só poderia ser assim, depois de lançado na festa da CEU.

Depois eu conto outras passagens que o envolvem. Se cruzar com ele novamente quero que cante sua marchinha carnavalesca "Piranha que só dá no mar". Parabéns.

 

José Eurides Queiroz – Jornalista

Foi Editor do Jornal Bancário do Rio de Janeiro

 

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