Sexta, 17 Abril 2020 13:23

A Justiça do Trabalho mostra o seu relevante papel social: a necessidade de sermos humanos

Por Isabela Pimentel de Barros, Advogada e Mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário (PPGD/UERJ).

Heal the world

Make it a better place

For you and for me

And the entire human race

There are people dying

If you care enough for the living

Make it a better place

For you and for me

(Heal the world, Michael Jackson, 1991)

A Justiça do Trabalho, há anos, vem sendo alvo de intensa desmoralização diante de argumentos sem qualquer respaldo técnico. Visando enfraquecê-la e retirar o papel social que possui, muito se ouviu falar que a Justiça do Trabalho “sempre” protegia o trabalhador e prestava um desserviço à sociedade. Vejamos.

Em 2015, o Projeto de Lei Orçamentária para 2016 emitido pela Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização do Congresso Nacional propôs o cancelamento de 50% das dotações para custeio e 90% dos recursos destinados para investimentos sob o fundamento de que os recursos destinados eram exagerados a finalidade. Segundo o Projeto, as regras da legislação trabalhista, até aquele momento vigentes, eram extremamente condescendentes com o trabalhador. Nesse sentido, a redução de verbas tinha como objetivo estimular uma reflexão sobre a necessidade e urgência de mudanças legislativas a fim de “melhorar a justiça do trabalho, tornando-a menos onerosa e mais eficiente, justa e igualitária”.

A Lei no 13.255/2016 acabou ocasionando o corte de 90% no investimento e de 30% no custeio, o que fez, como foi amplamente noticiado na época, com que todos os Tribunais Regionais do Trabalho e varas do trabalho adotassem medidas de contenção de custo, dentre elas a alteração do horário de abertura e fechamento dos prédios; desligamento forçado de equipamentos de informática e telefonia a partir de determinado horário; supressão de contratos de serviços terceirizados; revisão de contratos de segurança; e redução de despesas com serviços postais.

Não é demais lembrar que, a despeito de qualquer fundamento da necessidade de reduzir o orçamento do Poder Judiciário, a Justiça do Trabalho foi a que, inegavelmente, sofreu o maior corte comparado às outras esferas como, por exemplo, a Justiça Federal.

De igual forma, não é demais lembrar que, em 2016, quando houve o corte de despesas da Justiça do Trabalho, o país teve uma média de desemprego de 11%. Mas a situação se agravou. Com a Emenda Constitucional 95/2016, que instituiu o novo regime fiscal e previu o teto para os gastos públicos por 20 anos, o orçamento dos órgãos públicos teve como limite o orçamento executado em 2016, corrigido pela variação projetada da inflação (IPCA).

Em março de 2017, o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, em debate acerca das mudanças na legislação trabalhista, declarou que “a justiça do trabalho não deveria nem existir”. Segundo as declarações do parlamentar, o excesso de regras trabalhistas era o grande responsável pelo alto número de desemprego no país que, então, alcançava 14 (quatorze) milhões de pessoas.

Em 2017, ainda, foi aprovada a Lei no 13.467/2017, conhecida como Reforma Trabalhista que, a pretexto da necessidade de modernização da legislação trabalhista, de diminuir sua rigidez para inserir as empresas brasileiras na competitividade e da geração de empregos, representou um verdadeiro desmonte dos direitos do trabalhadores. Mas, claro, apesar de retirar inúmeros direitos e flexibilizar vários outros, o desemprego não diminuiu.

Após 2017, a legislação trabalhista, sempre com os mesmos fundamentos utilizados para realizar a Reforma Trabalhista, sofreu novos ataques como, por exemplo, os realizados pelas Medidas Provisórias (MP’s) 873/2019 e 881/2019.

Em 2020, a Justiça do Trabalho teve que se readaptar, mais uma vez, com a redução de R$ 1 bilhão em seu orçamento.

Paralelamente a esse movimento, no entanto, observa-se que o governo que tomou posse em 1º de janeiro de 2018 começou a estimular o empreendedorismo. A título de exemplo, notícia veiculada em 26/07/2019, na mídia, informava que a “Ideia é criar um “marketplace” de soluções para o empreendedor”, segundo o subsecretário de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas, José Ricardo da Veiga. Não por acaso, em abril de 2019, foi publicada a MP 881/2019, conhecida como “MP da Liberdade Econômica” e, posteriormente, convertida na Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabeleceu normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica.

O resultado desses movimentos foi que, no trimestre encerrado em novembro de 2019, o índice de informalidade no país era de 41,1%, incluindo no mesmo os trabalhadores sem carteira assinada, os domésticos sem carteira, os empregadores sem CNPJ, os por conta própria sem CNPJ e os trabalhadores familiares auxiliares. Já o desemprego atingiu 11,9%.

Como consequência dos exorbitantes índices acima e demonstrando a premente necessidade de reflexão sobre a regulamentação do trabalhador autônomo, ao chegar a Pandemia do Covid-19 ao país, muitos de nós indagamos: e os trabalhadores autônomos, o que farão nesse momento? Somente mais de 15 dias após o início da Pandemia, dia 02 de abril de 2020, o Governo sancionou a Lei nº 13.982 concedendo o auxílio emergencial de R$ 600,00 mensais aos desempregados, microempreendedores e autônomos, desde que de baixa renda.

Quanto aos empregados com carteira assinada, o pagamento, a fim de auxiliar as empresas e a todos os trabalhadores nessa condição[1], visando à manutenção do emprego, nos moldes da MP 936/2020, pode chegar até ao valor do teto do seguro desemprego, atualmente estipulado em R$ 1.813,00.

Percebe-se, dessa forma, que o discurso de estímulo ao empreendedorismo, a ideia do “seja chefe de si mesmo”, prejudica o trabalhador e auxilia o empresário, sobretudo, em momentos de crise como o que estamos vivendo, quando o autônomo, ao não possuir proteção social e trabalhista, vê-se desprovido de meios de subsistência.

Enquanto isso, a Justiça do Trabalho, em que pesem os sucessivos ataques a legislação trabalhista e os cortes em seu orçamento, continuou atuando e, quando a Pandemia do Covid-19 chegou ao país a partir de março de 2020, obrigando o fechamento temporário e repentino de inúmeras empresas e colocando em risco o emprego de milhares de trabalhadores, mostrou o relevante papel social que possui.

De forma ágil, sendo obrigada ao fechamento de suas portas e, na maior parte dos Tribunais do Brasil, suspendendo os prazos e audiências, a Justiça do Trabalho disponibilizou imediatamente os e-mails e telefones das varas do trabalho em seu site e informou que estariam todos atuando em home office a partir de então. Alguns magistrados, demonstrando o lado humano que precisam ter para exercer o seu ofício, fizeram circular em redes sociais que as partes que tivessem valores depositados nos autos encaminhassem um e mail para as varas do trabalho com o título “Pedido de Alvará” para que os mesmos tivessem prioridade.

Em conformidade com o período de exceção que o país e os cidadãos estão vivenciando, a Justiça do Trabalho começou a agir, dando um grande exemplo de união entre magistrados, servidores e a advocacia, e demonstrando a sua relevância social. 

Pegando como exemplo o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 1ª Região (Rio de Janeiro), o Ato Conjunto nº 02/2020 determinou que fossem priorizadas as liberações de valores pendentes aos jurisdicionados, bem como fosse avaliada pelos magistrados a possibilidade de liberação dos valores incontroversos depositados nos autos. Determinou, ainda, que devido ao fechamento das agências bancárias, quando houvesse a indicação  de dados bancários do beneficiário ou de seu patrono, a liberação fosse determinada por transferência de crédito diretamente para a conta indicada.

O resultado dessa medida foi que, no período de 17/03 a 26/03, conforme notícia veiculada no site do TRT-1ª Região, foram expedidos 7.190 alvarás, ocasionando a determinação de pagamento de quase R$ 50 milhões aos jurisdicionados, ajudando a sobrevivência dos mesmos nesse período e injetando dinheiro na economia. Ressalta-se, contudo, que não cabe aqui discutir as dificuldades ocasionadas para o recebimento de tal numerário em razão dos sistemas bancários da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil.

Ademais dos valores incontroversos ou dos já depositados nos autos, houve um movimento na Justiça do Trabalho, embora não de forma unânime, para a liberação dos depósitos fundiários dos trabalhadores. As decisões, em geral, tiveram como fundamento basilar o fato de que o artigo 20, XVI, alínea “a”, da Lei nº 8.036/90 autoriza a movimentação da conta de FGTS dos trabalhadores residentes em áreas de calamidade pública, sendo certo que o Decreto Legislativo 6/20, expedido pelo Congresso Nacional, reconheceu o estado de calamidade pública decorrente da Pandemia de coronavírus (Covid-19). Argumentaram, ainda, que, em razão da suspensão dos prazos e audiências, a princípio, até 30/04/2020, será inevitável não haver uma demora maior na tramitação dos processos, motivo pelo possível a liberação dos depósitos fundiários dada a excepcionalidade da situação vivenciada. Em sentido diferenciado, o governo anunciou a MP 946/2020 que, utilizando o mesmo artigo 20, XVI da Lei no 8.036/90, permitirá o saque das contas de FGTS até o limite de R$ 1.045,00 (mil e quarenta e cinco reais) por trabalhador no período entre 15 de junho e 31 de dezembro de 2020.

Recentemente, começaram os estudos para a expansão das realizações de audiências virtuais que, atualmente, já estão sendo realizadas dessa forma pelo Centro Judiciário de Métodos Consensuais de Soluções de Disputas da Capital (Cejusc-CAP) de primeiro grau do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, a fim de que os jurisdicionados não fiquem desamparados por período indeterminado já que não se sabe, ao certo, quando as atividades judiciais poderão voltar ao seu exercício normal.

De igual sorte, houve outro movimento em prol de liberação de valores às empresas. Explica-se. Algumas empresas começaram a apresentar apólices de seguro fiança relativos aos valores dos depósitos recursais realizados a fim de postular a liberação dos mesmos. Em geral, o argumento utilizado pelas empresas no pedido consiste na necessidade dos valores para manutenção das mesmas neste momento e a não afetação do capital de giro. Embora também não tenha tido unanimidade, alguns magistrados começaram a deferir o pedido.

Além disso, no país, mais de R$ 171 milhões foram destinados à prevenção e ao combate do coronavírus para que, entre diversas outras medidas, sejam comprados respiradores e montados leitos, em razão das condenações por danos morais coletivos e de multas trabalhistas em ações movidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).

Somam-se ao numerário disponibilizado, as ações ajuizadas postulando o fornecimento imediato de Equipamentos de Proteção a inúmeras categorias profissionais. De forma célere as decisões judiciais tem deferido liminares a fim de garantir a saúde e proteção dos trabalhadores que não paralisaram as suas atividades. A título de exemplo, no Rio de Janeiro, nos autos da ação no 0100235-72.2020.5.01.0049, a Juíza do Trabalho em exercício da 49ª Vara do Trabalho determinou o fornecimento imediato de equipamentos de segurança como álcool gel e gorro aos profissionais de saúde representados pelo Sindicato dos Enfermeiros do Rio de Janeiro.

 Assim, apesar da suspensão dos prazos e das audiências, essa esfera do Poder Judiciário tem trabalhado incansavelmente. Longe de esgotar o tema, essa breve análise procurou demonstrar o relevante papel desse ramo do Poder Judiciário, que demonstrou a sua relevância social e econômica.

O professor universitário e juiz federal, o Dr. Marcelo Leonardo Tavares afirma que um dos maiores desafios de períodos de emergência é a manutenção do Estado Democrático de Direito e, sem dúvida, esse é um desafio imposto neste momento. É imperativo que observemos a Carta Magna para que consigamos ultrapassar esse período sem retrocessos sociais.  

Porém, note-se que, a despeito de tantos ataques sofridos nos últimos anos, a Justiça do Trabalho tem demonstrado, neste período de crise, o relevante papel social que tem, não só na busca pelo equilíbrio entre o capital e o trabalho, mas também na necessidade de construirmos um mundo melhor e sermos humanos, demasiadamente humanos neste momento.

 

 


[1] O artigo 6º da MP 936/2020 excepciona o recebimento do Benefício Emergencial somente para os seguintes trabalhadores: os que ocupem cargo ou emprego público, cargo em comissão de livre nomeação e exoneração ou titular de mandato eletivo; ou em gozo: (i) de benefício de prestação continuada do Regime Geral de Previdência Social ou dos Regimes Próprios de Previdência Social, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 124 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991; (ii) do seguro-desemprego, em qualquer de suas modalidades; e (iii) da bolsa de qualificação profissional de que trata o art. 2º-A da Lei n° 7.998, de 1990.

 

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