EXPEDIENTE DO SITE
Diagramação: Marco Scalzo
Diretora de Imprensa: Vera Luiza Xavier
Nessas últimas semanas vivemos aqueles festivais de explicitação de números pouco confiáveis sendo divulgados – e desmoralizados – no país. Não vou abordá-los na ordem cronológica em que foram sendo divulgados, mas em uma ordem de importância frente aos impactos causados.
Em 26 de janeiro, tivemos a revisão dos dados do mercado de câmbio contratado feita pelo Banco Central do Brasil para o período de outubro de 2021 a dezembro de 2022, mais de um ano, portanto. Para o ano de 2021, essa revisão apontaria uma diferença (a menor) de cerca de US$ 1,7 bilhão e para o ano de 2022, de cerca de US$ 12,5 bilhões. Só para se ter uma ideia, com o erro, o fluxo do ano de 2022 passa de positivo a negativo. O Banco Central assumiu o erro e se desculpou, através de seu chefe do Departamento de Estatísticas. O erro, entretanto, com a divulgação de um superávit para 2022, não é neutro, pois impactou nas expectativas em relação ao dólar estadunidense, talvez evitando uma maior desvalorização do real. Assim, independentemente de ter sido um erro, alguém ganhou e alguém perdeu com esse erro.
Outro erro dramático, da ordem de bilhões de reais, foi a divulgação pelo principal executivo da Americanas naquele momento, o então presidente-executivo Sérgio Rial, de “inconsistências contábeis” da ordem de R$ 20 bilhões. De acordo com Sérgio Rial, o acúmulo ao longo de alguns anos se deu pelo fato do “risco sacado, que não era lançado como dívida”. Segundo a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o “risco sacado” consiste em uma modalidade de antecipação de recebíveis. Ou seja, “a companhia vendedora emite uma fatura que contempla o prazo a ser financiado pelo banco, porém não reconhece em sua contabilidade a venda pelo valor presente. E com isso apresenta um resultado “Ebitda” (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) maior”. Desta forma, as Americanas, como empresas compradoras, conseguiriam distorcer sua real situação financeira.
Essa é uma possível explicação, e está sendo apurada, mas dado o volume de recursos envolvidos, o caso está ganhando contornos legais bastante expressivos, já que de outro lado, além dos fornecedores, estão grandes bancos que financiavam as operações (BTG Pactual tomou a frente nos questionamentos, mas foi na sequência acompanhado por Itaú, Bradesco e Santander, só para ficar em alguns). Briga de cachorro grande, sabendo que os controladores das Americanas (o conhecido trio de aplicadores Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira) são megainvestidores do mercado de ações, e controladores de várias empresas.
Falando em mercado de ações, o valor das ações das Americanas derreteu na bolsa, levando também a imensas perdas de aplicadores em geral. É importante tomar em consideração aqui que o trio de controladores da empresa tinha fama no mercado de uma capacidade enorme de transformar em ganhos sua gestão de aplicações, ocasião em que funcionavam como uma espécie de “farol” para outros investidores, em especial menores. Assim, se pela via judicial ou da negociação talvez as grandes instituições financeiras salvem uma parte de suas perdas, é possível que os pequenos e médios investidores acabem realizando uma perda monumental. E pelo “risco reputacional”, ou seja, o risco que vai passar a estar associado às figuras de Lemann, Telles e Sicupira, é possível que várias outras empresas que controlam ou têm aplicações substanciais tenham perdas consideráveis também.
O mercado de ações começou quente, a ponto de derreter valores e reputações nesse início de ano, mas o resultado final vai depender dessa briga de cachorros grandes. Só mais um elemento aqui: a “contabilidade criativa” do setor privado nesse caso vai levar junto também a reputação das empresas de auditoria, que aprovaram sem ressalvas os números da contabilidade apresentados ao longo de anos pelas Americanas.
E por falar em “contabilidade criativa”, um rombo várias vezes maior foi apresentado pelo governo Bolsonaro. Esse rombo fica sujeito a uma disputa de “narrativas” daqui para a frente. A contabilidade de Paulo Guedes e Bolsonaro apresentou resultado positivo, para o governo central (não inclui níveis subnacionais, os estados e municípios, e nem as empresas estatais) de R$ 54,1 bilhões no ano de 2022, revertendo uma trajetória de oito anos consecutivos de déficit, segundo anúncio feito em janeiro.
Qual o problema? Bem, pelo menos três. Um, mais subjetivo, é que parte substancial desse “superavit” é resultado da chamada “dívida social”, cortes de gastos e contingenciamentos nas áreas sociais, saúde, educação e assistência social. E dois outros problemas, absolutamente objetivos, que se relacionam com a chamada “contabilidade criativa”. Apenas o primeiro praticamente zera o tal superavit: um acúmulo de cerca de R$ 50 bilhões de precatórios não-pagos, tornado possível pela chamada PEC dos Precatórios, aprovada pelo governo Bolsonaro, e que permite empurrar para o futuro o pagamento de precatórios, que são decididos pela Justiça. Mas tem mais: uma estimativa de mais de R$ 255 bilhões de restos a pagar (valores que deveriam ter sido pagos em 2022, e passaram para o orçamento de 2023), mais de R$ 20 bilhões a mais do que no ano anterior.
Ou seja, para “lustrar” sua reputação com um superavit, e jogar para debaixo do tapete os gastos eleitorais do segundo semestre, a contabilidade oficial de Bolsonaro e Guedes empurrou pagamentos que deveriam ter sido efetuados para a frente. Assim, “gerou” magicamente um resultado no “azul” – positivo, no jargão contábil.
A herança de números parece ser muito ruim, e esses acontecimentos devem colocar sob olhares bastante atentos as próximas divulgações de números por parte do setor público e do setor privado. Como confiar, em um quadro como este? É fundamental reforçar mecanismos de controle, transparência e publicização das informações, sob risco de ficarmos totalmente à mercê de que os números na área orçamentária, cambial e financeira virem ficções.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Fonte: Terapia politica