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Diretora de Imprensa: Vera Luiza Xavier
Carlos Vasconcellos
Imprensa SeebRio
O antropólogo, educador, escritor, pesquisador e político Darcy Ribeiro completaria nesta quarta-feira, 26 de outubro, 100 anos. Poucas personalidades fazem tanta falta ao Brasil como ele, que se autoconsiderava um utópico. Nascido em 1922, em Montes Claros, Minas Gerais, dedicou sua vida por um país soberano e justo, pela educação pública de qualidade, pelos índios e o meio ambiente. Era considerado pelo cineasta Glauber Rocha, como um dos “gênios da raça”.
Processo civilizatório
A qualidade de sua obra acadêmica é reconhecida no mundo inteiro. Em sua pesquisa antropológica, saiu de São Paulo aos 24 anos para viver anos com os índios no Pantanal, em Mato Grosso do Sul, Pará e Maranhão. Queria compreender a vida nas tribos e a formação do processo civilizatório brasileiro. Entre 1947 e 1956, trabalhou como etnólogo no Serviço de Proteção ao Índio, atual Fundação Nacional do Índio. Entre as contribuições de suas pesquisas, descobriu que os “Urubus-Kaapor eram os últimos descendentes diretos dos Tupinambás”. Em 1948 casou-se com Berta Gleizer Ribeiro, também antropóloga.
Suas experiências de campo resultaram em obras consagradas da antropologia, o que o levou a receber na Universidade de Sorbone, em Paris, o título de Doutor Honoris Causa. Criou o Parque do Xingu, mas costumava dizer que “os indígenas haviam feito muito mais por ele”.
Entre suas obras mais destacadas, o que o levou a ser considerado um dos mais importantes pensadores do mundo no século XX, foram: O Processo Civilizatório; As Américas e a Civilização; O Dilema da América Latina; Os Brasileiros: Teoria do Brasil, Os Índios e A Civilização. Escreveu também livros literários, como Maíra. Ao lado do cineasta e fotógrafo alemão Heinz Foerthmann, produziu os filmes “O Funeral Bororo e “Um dia de vida índia na Floresta Tropical”.
Darcy na política
Como pensador, defendia “teorizar soluções” para mudar a realidade brasileira e criticava o comodismo do meio acadêmico burocratizado. Esta posição o levou à política. Marxista, dizia que o suicídio de Getúlio Vargas e a Carta Testamento influenciaram profundamente a sua visão política, ingressando no PTB. “Com o suicídio, tudo ‘transvirou’. Getúlio morto fez a cabeça de muitos intelectuais anteriormente opostos a ele, mas de pendor socialista. A notícia do suicídio caiu em mim como uma bomba, sobretudo a Carta Testamento, o mais alto documento jamais produzido no Brasil”, declarou.
Teve papel fundamental para a Lei de Diretrizes e Bases e democratização da educação pública, questões pelas quais lutava desde o governo de Juscelino Kubitschek, quando trabalhou junto com seu mestre, Anísio Teixeira. Depois ocupou o Ministério da Educação, e em seguida, da Casa Civil do presidente João Goulart, que assumiu o governo contra a vontade dos militares após a renúncia do controverso Jânio Quadros. A posse do presidente só foi possível com a mobilização popular e armada organizada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, na chamada “Cadeia da Legalidade”. .
O exílio
Pouca gente sabe, mas com o golpe de 1964 e Jango já viajando para o exílio, Darcy permaneceu no Palácio do Catete com uma pistola na mão. Queria resistir ao golpe. “Darcy, não temos mais condições de resistir, Jango não quer a luta armada e até Brizola já está indo para o exílio”, ouviu contrariado e em silêncio por horas, até ser convencido de que o golpe militar já estava consumado.
No exílio, lecionou na Universidade da República Oriental, no Uruguai e, mais tarde, trabalhou com o presidente socialista do Chile Salvador Allende, que acabou sendo assassinado pelo CIA, Serviço Secreto dos EUA, e militares chilenos que impuseram um golpe militar.
O educador
Ribeiro teve papel fundamental para a Lei de Diretrizes e Bases e democratização da educação pública, questões pelas quais lutava desde o governo de Juscelino Kubitschek, quando trabalhou junto com seu mestre, Anísio Teixeira. Chegou a ocupar a pasta da Educação no governo Jango.
Com a anistia, filiou-se ao PDT de Leonel Brizola, pelo qual se elegeu senador. Trabalhou com o líder gaúcho nos dois governos do Rio, construindo 500 escolas em horário integral, os CIEPs, em que as crianças tinham atividades artísticas, esportivas, três refeições por dia, assistência médica e dentária. O projeto, que foi considerado pela ONU como referência mundial de qualidade educacional tinha uma fábrica de escolas, pois as edificações eram pré-moldadas. Aos críticos, que diziam que o programa era muito caro, o então secretário da Educação do Estado do Rio respondia: “Caro mesmo é a ignorância”. Estava certo. Os CIEPs foram destruídos por governos sucessores e pelas elites. O Rio e o Brasil ainda hoje patinam na educação.
Fez ainda a Universidade de Campos, a mais avançada do país na área de pesquisa de petróleo e gás. Criou a Biblioteca Estadual, no Centro do Rio, .e o sambódromo, espaço para os desfiles das escolas de samba, mas que era, antes de tudo, escolas em horário integral, com salas nos camarotes.
“Fizemos mais escolas integrais que emprestamos uma vez ao ano para o carnaval, a maior festa popular do mundo”, dizia com orgulho. Os CIEPS e a Universidade eram edificações projetadas pelo então maior arquiteto do mundo, Oscar Niemeyer, seu amigo de longa data.
Sempre preocupado com a causa contra a discriminação aos mais humildes, construiu o Monumento ao Zumbi dos Palmares.
Inquietude e utopia
Darcy Ribeiro era, antes de tudo, um sonhador, um “utópico”, como se autodefinia. Em sua luta pela vida, pelo Brasil e pelo povo, enfrentando um câncer, fugiu do hospital para terminar sua obra conclusiva, “O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”, indo para a sua casa, em Maricá (RJ). Escrito sem o rebuscamento de textos acadêmicos, para a compreensão do maior número possível de leitores, o livro é imprescindível para qualquer estudante secundário e universitário que queira compreender a formação do processo civilizatório brasileiro e os desafios para a soberania nacional e a emancipação popular.
Se estivesse na peleja
Darcy dizia sofrer por não conseguir acreditar em Deus, visão que teria mudado no final de sua vida, com diálogos que teve com seu amigo e teólogo, Leonardo Boff.
Hoje, ele é uma das ausências mais sentidas. Em tempos sombrios, em que o bolsonarismo corta R$1 bilhão da educação básica e R$2,4 bi das universidades e cria escolas “militarizadas” e de péssima qualidade, o mestre estaria na peleja, em defesa da democracia, da escola pública integral de qualidade para todas as crianças e jovens brasileiros e por justiça social. Darcy Ribeiro, como Brizola, estaria com Lula, mesmo com as divergências profundas e históricas que os dois tinham com o líder petista.
No dia em que completaria 100 anos, o mestre, mais do que nunca, faz falta. Muita falta. Mas o seu legado vive, inspira e dá força para todos que lutam por sua utopia: a de um Brasil soberano, uma educação libertária e um povo emancipado.
Inquieto, dizia ter perdido a batalha de sua vida pelo Brasil. Mas sabia que seu legado era vitorioso, e dizia:
“Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.