Segunda, 26 Outubro 2020 21:26

Os 98 anos de Darcy Ribeiro: como faz falta o mestre

Por Carlos Vasconcellos

Imprensa SeebRio

 

Inquieto. Indignado. Brilhante. Realizador. Gênio da raça. Poucos brasileiros dedicaram tanto a sua vida ao Brasil e ao povo brasileiro como Darcy Ribeiro.  E como ele faz falta nestes tempos em que a mediocridade absoluta triunfou no país. Por enquanto.

O antropólogo, um dos mais respeitados internacionalmente, dedicou a sua vida aos indígenas, vivendo por mais de dez anos entre eles nas tribos em meio às florestas para compreender as raízes culturais e a formação de uma civilização mestiça e complexa, que ele sonhava e acreditava, tinha tudo para ser uma “Nova Roma”. Darcy via aqui uma nação singular onde a soberania popular levaria o Brasil a encontrar seus próprios caminhos de desenvolvimento econômico e de justiça social, o “socialismo moreno”. Como dizia seu amigo Leonel Brizola, era o “processo social” que diria qual o modelo iríamos criar para a libertação popular, sem plagiar sistemas do velho mundo, nem o liberalismo capitalista dos EUA, nem a ditadura do proletariado da União Soviética. Um modelo socialista democrático fundamentado no trabalhismo histórico de Getúlio Vargas que criou as bases deste futuro promissor. Uma civilização única que muito tinha e tem, apesar dos percalços, a contribuir para um mundo melhor e uma vida mais digna para todos. 

No Brasil, ele era invejado por acadêmicos de gabinete. Um deles, o antropólogo Roberto Da Matta, Darcy respondia as suas críticas dizendo que o índio mais longe que seu desafeto havia visitado era a estátua do cacique Arariboia, fundador de Niterói. Aos críticos do próprio meio político do campo popular dizia que eles eram “a esquerda que a direita gosta”, indignado com os partidos de esquerda que não o apoiaram para governador contra Moreira Franco e nem a Brizola para presidente, em 1989.

Com câncer, fugiu do hospital para terminar seu último livro. Uma obra prima que nenhum estudante universitário e secundarista, nenhum brasileiro e brasileira, poderia cometer o desatino de não ler: “O Povo Brasileiro”, sua obra conclusiva, escrita em linguagem acessível e mostrando porque e como o Brasil não deu certo. Ainda.

Elegeu o primeiro índio para o Congresso Nacional, o cacique Mário Juruna. Por seu feito, foi vítima de chacotas da direita preconceituosa e racista e mesmo de setores da esquerda festiva de classe média. O complexo de vira-latas destes críticos não permitia vê-los que o Congresso Nacional tinha que ter a cara do povo: negros, índios, mestiços, ribeirinhos, mulheres.

Olhando hoje para a maioria que forma a base do atual governo na Câmara e no Senado, como é fácil afirmar que Darcy tinha, mais uma vez, toda a razão: quem nos dera ter mais jurunas e menos chicos rodrigues (DEM-RR), o líder do Governo Bolsonaro no Senado preso recentemente pela Polícia Federal com dinheiro entre as nádegas. 

Como todo defensor dos índios, Darcy era um ambientalista. Não do ambientalismo difuso, mas sim, das realizações em defesa da natureza que tanto apreciava e amava, como pensador, escritor e homem. Sua genialidade só pode ser compreendida na totalidade do ser deste brasileiro extraordinário, a infância, o universo acadêmico, o saber libertário, o escritor, o indigenista e etnólogo, o educador, o político, o sonhador. Para ele não há uma separação entre ficção e realidade. E o que é vida senão um sonho? Darcy Ribeiro é uma poesia.  

Poucos sabem. Mas ele, ministro da Casa Civil de João Goulart, foi o último a deixar o Palácio com o golpe militar de 1964. Empunhava um revólver 38 e disse para um assessor que iria ficar para resistir. O amigo lhe disse a dura verdade que caiu como uma bomba sobre a sua cabeça e que ele considerou o momento mais difícil de sua vida: “Darcy, todos já partiram. Jango não quis resistir. Até Brizola está a caminho do exílio. Estamos aqui sozinhos. Perdemos esta batalha”.

Culpava pelo atraso do país, a burguesia, que ele acusava de ser “ranzinza”, “azeda”, “mesquinha”. E como de fato é. Que o diga o nosso presente drama. E que o Brasil precisava, através de uma educação pública integral, de qualidade, libertária, permitir que as futuras gerações construíssem a nação que a sua geração não pôde ou não foi capaz de realizar. Além de antropólogo, sociólogo, indigenista, era o Darcy educador, político, revolucionário que o tempo fazia aprofundar. Quando construiu estas escolas de qualidade, consideradas pela ONU como referência mundial de educação fundamental, os opositores diziam que o projeto era muito caro e que “escola não é pensão”, referindo-se ao fato de os CIEPs oferecem três refeições por dia para as crianças. Ao contrário do que muitos imaginam, seu objetivo não era o de oferecer educação integral e de qualidade apenas para os pobres, cumprindo inclusive o processo de desmarginalização, mas sim, para todas as crianças brasileiras, rompendo os preconceitos de classe.

Darcy deu mais uma resposta aos críticos do projeto que hoje, ante a atual violência urbana que explode em todos os recantos, comprova de novo, que o mestre tinha razão; “caro é construir presídios”, "aparatos militares para a polícia". E que preço as comunidades negras, das favelas e periferias estão pagando com a própria vida, ante o extermínio de jovens pobres, sangue derramado como na mestiçagem da origem de nosso doloroso processo civilizatório.

Destruíram as escolas integrais projetadas por ele e construídas pelo governador Brizola. Dizia que o fracasso na educação era um “projeto das elites”. De fato, ainda é. E, novamente, uma frase genial sua está mais do que nunca viva na realidade de hoje quando ele rebatia aos críticos a respeito do custo das escolas integrais: “caro é a ignorância”. E como estão pagando caro os brasileiros e brasileiras pelo descaso com a educação. A ignorância e a miséria, bombardeada pelas fake news do mundo virtual, levaram ao poder Jair Messias Bolsonaro, presidente de uma nação tão sofrida, mas ainda eternamente promissora. Um governo que leva de vez o país ao fundo do poço, em todas as áreas, em todos os aspectos, numa tragédia nacional sem precedentes. Para estes que hoje aparelham o estado com militares medíocres e entreguistas e figuras patéticas assistimos, de fato, o preço alto da ignorância. Nenhum compatriota merecia tamanha tragédia nacional.

Realizador, Darcy construiu 500 escolas integrais no Rio de Janeiro, bem como o sambódromo, cujos camarotes foram transformados em salas de aula e “uma vez por ano, dizia ele, emprestaria durante quatro dias, para a maior festa popular, o carnaval”, com o desfile das escolas de samba.

Diante da União Soviética que ruíra, trouxe PHDs russos para tornar a Universidade de Campos, mais um projeto seu, uma instituição pública de ponta na área de pesquisa de gás e petróleo. Parecia prever o advento do Pré-Sal.

Tentou fazer da Universidade de Brasília (UNB), uma escola superior libertária e autônoma. Dizia ter fracassado em tudo: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu".

Sim, Darcy, todos nós fracassamos. E, mais do que nunca, olhando para aqueles que ocupam o Palácio do Planalto, nós podemos afirmar: nossos fracassos são nossas vitórias. Detestaríamos estar no lugar de quem nos venceu.

Mas a célebre frase que expressava a sua maior frustração, a de não ter visto a emancipação do povo brasileiro, não era, na verdade, pessimismo. O filho de uma professora do interior de Minas Gerais que tornou-se o nosso mais brilhante acadêmico, não perdia a esperança de um Brasil soberano e justo.

Ele dizia que sonhava ser, um dia, imperador do Brasil para passar o país a limpo. Era uma metáfora, para dizer que ele e Brizola precisavam chegar ao poder para promover a revolução educacional e cortar pelas pernas o modelo econômico que espolia o povo brasileiro. Quem nos dera, Darcy. Quem nos dera tê-lo como “imperador do Brasil”. Mas a sua batalha ainda não acabou.

 

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