Quinta, 30 Julho 2020 14:54

Para advogado, decreto de Bolsonaro que ampliou reforma da Previdência é inconstitucional

Para o advogado Luis Henrique Rodrigues, as novas regras, todas prejudiciais aos segurados, só poderiam ter sido fixadas por lei complementar Para o advogado Luis Henrique Rodrigues, as novas regras, todas prejudiciais aos segurados, só poderiam ter sido fixadas por lei complementar

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SeebRio

Nesta entrevista, o advogado do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, especialista em Direito Previdenciário, Luis Henrique Rodrigues da Silva, critica o conteúdo do decreto 10.410, classificando-os de extremamente prejudicial aos trabalhadores. Assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em 30 de junho último, portanto, aproveitando-se da pandemia, regulamenta as alterações feitas pela emenda 103 que reformou a Previdência Social, em novembro de 2019, retirando direitos, aumentando as exigências e o tempo para a concessão de aposentadorias e pensões e reduzindo, ainda mais, o valor destes benefícios. Mas o decreto foi além, tornando ainda piores as regras estabelecidas pela reforma, o que pode ser objeto de contestação por ser inconstitucional. Na avaliação do advogado, o decreto, no seu todo, é inconstitucional, já que para regulamentar uma emenda à Constituição Federal tinha de ter as normas fixadas através de lei complementar. Entre os muitos itens negativos do decreto, classificou como absurda a contagem do tempo de contribuição para a obtenção da aposentadoria que passou a considerar apenas o mês cheio e não mais os dias trabalhados, a exigência de todos os requerimentos serem feitos agora por via virtual e o fim do direito dos portadores de deficiência ao descarte das 20 menores contribuições para o cálculo da aposentadoria, o que reduzirá o seu valor. E frisou que o decreto terá graves consequências sociais e econômicas, principalmente nas cidades do interior.

SeebRio - O governo Bolsonaro, em plena pandemia, no início de julho, teve tempo para baixar um decreto consolidando as novas regras instituídas pela reforma da Previdência dificultando ainda mais a concessão de aposentadorias, pensões e outros direitos. Que pontos do decreto o senhor destacaria como os mais prejudiciais?

Luis Henrique Rodrigues da Silva – Esse decreto 10.410, de 30 de junho de 2020, veio para alterar o regulamento anterior da Previdência Social (previsto no decreto 3.048, de 1999, que regulamentava as leis previdenciárias, dispostas, tanto na lei 8.212, quanto na 8.213) e para regulamentar as alterações previstas na emenda constitucional 103, de 13 de novembro de 2019 (reforma da Previdência). Para a nossa surpresa e espanto, não apenas regulamentou, como também modificou algumas normas que haviam sido estabelecidas pela emenda 103. Dentre os pontos prejudiciais deste decreto, estão a questão do tempo de contribuição, que o decreto mudou a forma de contagem: antes era feita por dias, e, agora passa a ser por mês cheio. Peguemos o exemplo de um trabalhador com carteira assinada, contribuinte obrigatório, admitido no dia 26 de um determinado mês. E demitido, tempos depois, num dia 29. Vai significar que por não ter um mês completo, perderá quase dois meses do seu tempo de contribuição, o que é inadmissível. Até porque, independentemente do período, se a contagem é em dias, o trabalhador contribui sobre o total de dias, que não podem ser suprimidos do seu tempo de contribuição.

SeebRio – Há mais alterações negativas no decreto?

Luis Henrique – Sim. Outro fato prejudicial é o do agente cancerígeno. É um retrocesso inadmissível. Na legislação anterior, o agente cancerígeno (existente no ambiente trabalho) já era presumido como nocivo à saúde do segurado, inclusive, dando direito à aposentadoria especial ou à conversão deste período especial em comum. Agora, o decreto exige que devem ser feitas medidas específicas para provar que esse trabalhador fica exposto a esse agente cancerígeno e que o Equipamento de Proteção Individual (EPI) ou o Equipamento Coletivo de Proteção (EPC) não são eficazes. Outro ponto prejudicial é quanto à pessoa com deficiência que pela regra anterior teriam descartadas as 20 menores contribuições, de junho de 1994 para cá, e passou a exigir que entrassem no cálculo do valor da aposentadoria todas as contribuições incidentes sobre os salários. Isso é extremamente prejudicial porque acaba reduzindo o valor da aposentadoria. Outra mudança grave é que o período de afastamento por incapacidade não será mais computado como tempo especial: um trabalhador exerce uma atividade especial (que podem causar danos à saúde) e acaba ficando em auxílio-doença ou auxílio-acidente de trabalho. Esse tempo passa a não ser mais contado como especial. Essa mudança também pode ser estendida a quem é dirigente sindical que mesmo afastado do seu trabalho, permanecia com a contagem especial. Outra mudança é que o período de afastamento conta como tempo de contribuição, mas não para a carência para a concessão de um novo benefício.  

SeebRio – O senhor poderia detalhar mais a explicação sobre a mudança da contagem do tempo de contribuição que passa a ser pelo mês cheio e não mais por dia trabalhado?

Luis Henrique – Como disse anteriormente, ela é extremamente prejudicial. Sobretudo porque que fere o princípio da contraprestação, uma vez que a pessoa contribui sobre estes dias, que não completam um mês, e que, por isto, não serão contados como tempo de contribuição, já que só será levado em consideração o mês cheio a que se refere o decreto. Isso é uma clara subtração do direito do trabalhador. É um roubo. É como o exemplo que citei, do empregado contratado no dia 28 de um certo mês: esses dias não serão computados porque não completam um mês, e isso, apesar de ter trabalhado, apesar dele e do seu empregador terem pago. Ou seja, isso não contará do seu tempo de contribuição. O que é um absurdo! E estamos falando só da data de admissão. Mas, se a data de demissão não for também o dia 30, ele perderá todos estes dias que contribuiu e que não completaram um mês. Isso, num único registro de contrato de trabalho. Mas se, ao longo de um certo tempo, o empregado tiver 10 registros e 25 dias em cada registo, o que vamos ter é um trabalhador perdendo quase seis meses do seu tempo de contribuição. O governo faz isto com o intuito de obrigar as pessoas a ficar mais seis meses trabalhando, ao invés de conceder o benefício que é de direito do trabalhador.

SeebRio - O decreto de Bolsonaro foi além das mudanças feitas pela reforma, que já eram terríveis. Por exemplo, de maneira covarde e desumana, em relação a trabalhadores com deficiência, determinou que para o cálculo do valor da aposentadoria fossem levadas em conta todas as contribuições desde 1994, quando, pela reforma, poderiam ser descartados do cálculo as 20 mais baixas. Desta forma, reduz ainda mais o valor. A reforma foi feita como emenda à Constituição Federal. Esta norma é inconstitucional, ou é válida mesmo assim?

Luis Henrique – Todo decreto é passível, sim, de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN). Isso pode ser feito por qualquer partido, qualquer órgão da sociedade que entenda serem inconstitucionais as regras contidas no decreto. Apesar de ter apenas 28 dias, o decreto já possui contra ele diversas ações de inconstitucionalidade, justamente para discutir a legitimidade das regras por ele dispostas, até porque, deveria regulamentar uma lei constitucional. Ou seja, todas estas mudanças efetuadas pela emenda constitucional 103, de 2019, deveriam ser aprovadas por lei complementar, razão pela qual o decreto extrapola sim, no meu entendimento, a sua capacidade normativa uma vez que cria regras e situações que deveriam ser tratadas exclusivamente em lei complementar, o que não foi o caso.

SeebRio – O decreto institui como norma o uso de meios virtuais para pedido e concessão de aposentadoria, pensão e auxílio-doença e por acidente de trabalho. Somente em casos especiais o atendimento será feito de forma presencial. Ocorre que 46 milhões de brasileiros não têm acesso à internet, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), seja pelo baixo poder aquisitivo, ou por residirem em regiões sem cobertura. Ou seja, atinge, sobretudo, os mais pobres. Sem contar os que não sabem utilizar esta tecnologia. Qual será o impacto desta decisão e porque o governo a tomou, sabendo do seu impacto social?

Luis Henrique – Essa questão do uso do meio virtual como requisito para o pedido de todo e qualquer requerimento administrativo é inadmissível. São 46 milhões de brasileiros sem acesso à internet, principalmente, a população mais pobre do país. A exigência vai afetar diretamente estas famílias. Apesar das regras estipularem que pode ser feito presencialmente, de forma excepcional, nas agências do INSS, a gente sabe que estas regras não são cumpridas administrativamente, como já acontece hoje, quando todos os requerimentos são feitos de forma virtual, em virtude da pandemia. E a gente está vendo que é um verdadeiro pandemônio. As pessoas não conseguem obter o benefício, não têm seus pedidos analisados, recursos não são aceitos, pedidos diversos sequer são recebidos pelo INSS, simplesmente porque não tem o acesso direto de forma presencial nas agências, principalmente para fins de perícia médica. Esta é mais uma forma encontrada pelo governo de fazer com que as pessoas não tenham acesso a seus direitos previdenciários, a seus benefícios, aposentadorias, pensões, enfim à Previdência Social. Essa é a verdade.

SeebRio – Ao reduzir o valor, dificultar, e, em muitos casos, impedir a obtenção da aposentadoria, o governo acaba atingindo não apenas milhões de segurados, mas também milhares de cidades do interior inteiras que têm nos aposentados, os principais consumidores de produtos e serviços. Que impacto sociais podem gerar estas mudanças?

Luis Henrique – O impacto social em virtude da emenda constitucional 103 e do decreto 10.410 é gigantesco sobre toda a economia, principalmente nas cidades do interior, uma vez que as consequências destas mudanças vão culminar na queda da atividade econômica, na redução da renda pessoal, na redução da renda familiar, do consumo das famílias, e, consequentemente, na redução do PIB (Produto Interno Bruto), podendo acarretar, o endividamento em massa. Além disso, ao reduzir de forma drástica as formas de cálculo dos benefícios, diminuir o consumo, traz mais dificuldades para o comércio, gerando o fechamento de estabelecimentos e aumento do desemprego. Cria toda uma situação econômica gravíssima em que mesmo as empresas multinacionais ficarão inseguras em trazer investimentos para o país se não há consumo e se há uma redução de gastos públicos. Sem investimentos e com o desemprego aumentando e com queda da atividade econômica, o país caminha a passos largos para uma estagnação, ou até mesmo, uma recessão. Estas são, infelizmente, as consequências destas mudanças.

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