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Diagramação: Marco Scalzo
Diretora de Imprensa: Vera Luiza Xavier
O grande filme de terror do ano não é uma ficção. É um documentário brasileiro no qual um assassino confesso detalha como matava e incinerava os corpos de militantes brasileiros de esquerda a mando da extrema direita, em ligação clandestina com nosso governo federal e setores da elite de nossa sociedade civil.
O grande filme de terror do ano não é uma ficção. Nele, o matador Claudio Guerra, explica friamente que não cometia os assassinatos por ódio aos militantes de esquerda. Apenas cumpria ordens. Era leal aos mandantes dos crimes. Com isso, recebia em troca, além de bônus salariais depositados em contas clandestinas falsificadas pelos próprios bancos que financiavam seu grupo de extermínio, presentes como casas de praia e fazendas, o que lhe garantiam uma boa vida. Em certo momento, revela o lugar onde os militares escondiam clandestinamente centenas de fuzis de última geração usados para o combate a militantes de esquerda.
O grande filme de terror do ano não é uma ficção. Exibe uma longa conversa entre o ex-delegado do DOPS Claudio Guerra, que nos anos 70, matou e ocultou corpos de militantes de esquerda durante a ditadura civil militar instalada no Brasil. "Pastor Cláudio", dirigido por Beth Formaggini, que entra em cartaz nesta quinta-feira nos cinemas, escandaliza e aterroriza o espectador não pelo o que é nele revelado. Mas por não nos surpreender. Tudo ali já desconfiávamos. Já até sabíamos. Mas não fizemos, como sociedade civil, nada para contestar. Fomos cúmplices. Somos cúmplices. As denúncias do Pastor Guerra já foram inclusive investigadas e confirmadas pela Polícia Federal, poucos anos atrás. Nosso reflexo é insuportável.
O grande filme de terror do ano não é uma ficção. E não fala apenas do passado. Claudio Guerra, o matador arrependido que tornou-se pastor evangélico e fala o tempo inteiro com uma Bíblia na mão revela que a máquina de extermínio criada durante a ditadura civil militar não parou de funcionar com o fim do regime. Seguiu como máquina de extermínio "da bandidagem carioca", na prática pobres de periferia, e transformou-se, no Rio de Janeiro, em organizações fundadas por militares que com o intuito de provir segurança paralela para empresas e comunidades e a contravenção do jogo do Bicho. Tempo em que as milícias surgiram como organizações fundadas por militares, prometendo provir segurança paralela para empresas e comunidades.
Durante a conversa, o assassino arrependido Claudio Guerra nos impressiona por sua firmeza e convicção de que, revelando seu passado infernal, está agradando a Deus. Sem constrangimento, e sem desgrudar-se da Bíblia, chega a simular a pose de como executou com um tiro na cabeça um dos presos que agonizava após sessões de tortura.
Pastor Guerra também revela as táticas terroristas que o governo militar brasileiro utilizou-se ao executar um atentado a bomba na OAB, tentar matar milhares de pessoas em um show no Riocentro para, segundo ele, colocar a culpa em militantes de esquerda e, com detalhes forenses, informa que nomes como Zuzu Angel e Wladmir Herzog foram de fato assassinados pela ditadura.
Mas se Claudio Guerra matou, quem mandou matar?
A pergunta que sempre fica: quem mandou matar?
Aparentemente corajoso. O Pastor Claudio entrega o nome de seu chefe imediato: o Coronel Freddie Perdigão, citado inúmeras vezes durante a conversa exibida. Mas, repentinamente, o sereno e concentrado Claudio se distrai, e começa a entregar todo o esquema e organização por trás dos militares. Um grupo secreto de empresários e membros de nossa elite que se auto intitulam "A Irmandade". São eles que, segundo o ex-assassino, financiam todo o vai e vem do poder no país. Em encontros escondidos em, por exemplo, casas de prostituição de luxo, "A Irmandade" decide, até hoje, quem vive e quem morre, quem controla que parte da cidade. Nesse momento, percebendo o perigo, percebendo que mexeu com gente grande, a boca de Pastor Claudio começa a tremer de medo, as palavras começam a fraquejar, ele percebe, quer voltar atrás, e é ele mesmo tomado pelo terror que informa.
Mas Cláudio Guerra não pode voltar atrás. Ele sabe que a única garantia de estar vivo é contando tudo o que sabe, tornando-se uma pessoa mais pública possível. Ao mesmo tempo, o espectador percebe que também não pode mais voltar atrás. Agora ele, espectador, também é "uma pessoa que sabe demais".
Mas o que fazer com a informação nos confirmada pelo filme "Pastor Guerra"? Sair às ruas? Junto com quem, se há, em nossa sociedade uma maioria de cúmplices, até apoiadores destes crimes? Sai-se aterrorizado da sessão. O que nos aterroriza nos paralisa?
Eduardo Passos, psicólogo deleuziano e ativista dos direitos humanos, que trabalha com assistência a vítimas de violência do estado, é o entrevistador do assassino. Acaba se tornando um personagem, uma espécie de Virgílio que nos guia à descida ao inferno dantesco. Entre profundas e insolúveis questões éticas, Eduardo, em certo momento, percebe em Claudio Guerra, assassino arrependido, um muito bem escondido gozo e orgulho em seu entrevistado. Ao saber que a equipe de Claudio Guerra, quando recebia um cadáver embrulhado em um saco preto para incinerá-lo, resolvia sempre abrir o saco para ver o estado do corpo, insiste no assunto. E ouve: "Inclusive uma vez veio dentro do saco o corpo de uma mulher que havia sido torturada por militares, nós abrimos e verificamos que ela havia sido estuprada".
O grande filme de terror do ano não é uma ficção.
É um trauma.
Na Bíblia que o pastor Cláudio Carrega há inúmeros episódios onde Deus castiga o povo por suas escolhas. Pela sociedade que decidiu construir. O dilúvio, a torre de Babel, Sodoma e Gomorra, as cinzas que os judeus têm que comer para aprender a não venerar falsos ídolos, falsos mitos.
"Pastor Cláudio", o filme, o trauma, são as cinzas que temos todos, agora, como consequência, amargarmos em conjunto.
Se ainda quisermos alguma salvação.
Se ainda quisermos alguma humanidade.
Por: Dodô Azevedo - G1