Terça, 11 Junho 2024 21:54

Casos emblemáticos do assassinato de Marielle e do plano para matar Brizola revelam como as milícias dominaram o Rio

Estudo de Sociólogo e relato em livro de antropólogo mostram como milicianos tomaram o poder político no Estado
As milícias tomaram territórios, bairros, comunidades e o poder político no Rio de Janeiro. Passou da hora do povo dizer não a isso nas urnas As milícias tomaram territórios, bairros, comunidades e o poder político no Rio de Janeiro. Passou da hora do povo dizer não a isso nas urnas Foto: imagem do Twitter

 

Carlos Vasconcellos 

Imprensa SeebRio 

Segundo matéria publicada no Jornal GGN, a delação do ex-PM Ronnie Lessa confirma que a morte da vereadora Marielle Franco (Psol) e de seu motorista Anderson Gomes teria sido encomendada por causa de sua atuação nas comunidades, em especial em Jacarepaguá, onde está boa parte da base eleitoral da família Brazão e com forte dominação das milícias do Rio de Janeiro. 

Marielle vinha atuando contra negócios e estratégias das milícias na Zona Oeste da capital fluminense. 

Lessa disse em sua delação que receberia dos Brazão e do ex-PM Edimilson Oliveira, conhecido como "Macalé", como pagamento pelo crime, áreas para loteamento clandestino na Zona Oeste do Rio avaliadas em milhões, o que é negado pelos advogados dos Brazão. 

Origem das milícias 

Estudos acadêmicos do Sociólogo, doutor pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), José Cláudio Souza Alves, mostram a origem do poder paralelo das milícias. As pesquisas do professor remotam aos grupos de extermínio que surgiram na Baixada Fluminense, nos anos de 1960, em plena ditadura militar e com a participação de policiais e militares ligados ao aparato de repressão e tortura da ditadura militar.  

"Ali se montou uma estrutura na qual policiais matavam, empresários e comerciantes financiavam e o regime ditatorial dava suporte político para o funcionamento desses grupos", explicou, acrescentando que essa estrutura criminosa funcionou ainda mais fortemente nos anos 1970 "que visava, inicialmente, atingir os opositores da ditadura, mas acabou se tornando uma grande estrutura de controle territorial, financeiro e eleitoral nessas regiões.

"Com o tempo, isso foi se ampliando e ganhou as dimensões assustadoras que vemos hoje, com conexões no mundo político e na estrutura do Estado, principalmente na segurança pública. Onde há força policial de segurança pública, militar ou civil, grupos de extermínio foram organizados e continuam em funcionamento", denuncia.

Negócios milicianos 

O estudo mostra que essa estrutura criminosa envolve servidores públicos, políticos e os poderes legislativo e executivo.

Nos territórios dominados por milicianos comerciantes locais são obrigados a pagar propina para funcionar. Com o passar dos anos, o tráfico de drogas passou a utilizar a mesma estratégia de arrecadação e em muitos casos os dois poderes paralelos trabalham juntos: o tráfico vende as drogas sob a cobertura de milicianos e estes ficam com o dinheiro dos "pedágios" pagos por comerciantes e a venda de "gatonet", botijão de gás, construção irregular de condomínios, muitas vezes em área de proteção ambiental, transporte coletivo de vans, cobrança de taxa de luz e água e serviços de segurança. 

Cumplicidade institucional 

José Cláudio confirma em seu estudo um fato que a população fluminense já sabe: a cumplicidade de membros dos poderes legislativo, executivo ex do judiciário, que julga os processos relacionados ao domínio miliciano, é garantida com acordos e compensações. Ele cita que "há quase 30 anos, as milícias que atuam no bairro de Pilar e na área de proteção ambiental do São Bento, no município de Duque de Caxias, vendem terras da União como se fossem privadas. Os compradores recebem um registro geral de imóveis, evidenciando a colaboração de parte do Judiciário por meio da estrutura cartorial da cidade". Revela ainda que, também em Duque de Caxias, que fica o Campo do Bomba, uma área de cerca de 3 milhões de metros quadrados cedida ao município pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). 

"A ação fundiária das milícias se repete nos municípios de Nilópolis e Mesquita, onde estão algumas das áreas mais disputadas com finalidade imobiliária. Japeri e Belfort Roxo vão na mesma direção, sob violência pesada. No município de Seropédica, milicianos procuram imóveis com IPTU atrasado para serem tomados e vendidos", ressalta. 

Caso Marielle

Os milicianos dominam há últimos anos, a política eleitoral do estado. Se o candidato não for apoiado pelo grupo criminoso não pode sequer entrar em seus territórios para fazer campanha ou mesmo dialogar com moradores destas comunidades - esta era a atividade de Marielle Franco, que muita gente não sabe, não apenas lutava pela libertação das comunidades oprimidas pelas milícias, mas se solidarizara com viúvas também de policiais mortos pela "guerra particular" no Rio. 

"O caso de Marielle foi emblemático e teve repercussão internacional. Os culpados foram apontados porque houve uma forte determinação política. Uma coisa é identificar e levar a julgamento os assassinos da vereadora e de Anderson Gomes; outra é enfrentar uma organização consolidada e disseminada pelo território nacional, com várias gerações, muitos votos e infiltrada em todas as instâncias políticas", disse o acadêmico. 

O professor da UFRJ diz ainda que assim como no Rio de Janeiro bater de frente com a milícia é enfrentar políticos em nível estadual e nacional, em São Paulo há uma aliança de poder político com a Rota, criada em 1970 para combater militantes de esquerda.

"Como o Brasil não fez a lição de casa como ocorreu na Argentina, no Uruguai ou no Chile, aqui a ação de alguns grupos militares ensejou os grupos de extermínio e depoisx as milícias. Nos países mencionados, os crimes da ditadura foram punidos, com a condenação e prisão de torturadores e assassinos. Entre nós, tal estrutura permanece intocada e continua fazendo o que sempre fez, como a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023", afirmou, mostrando a estreita relação de militares golpistas e ditadores das Forças Armadas com o atual poder paralelo das milícias que gerou a família Bolsonaro ex chegou ao Palácio do Planalto e tentou um golpe de estado para permanecer no poder. 

"Por tudo isso, é preciso olhar muito criticamente o percurso e as ligações dos candidatos quex disputarão as eleições deste ano, sob o risco de seguir validando esse esquema", disse José Cláudio, mostrando que o povo do Rio de Janeiro tem a responsabilidade nas próximas eleições municipais e estaduais e federal em 2026, de manter este poder miliciano dominando os parlamentos e os poderes executivos e Judiciários ou reagir coletivamente derrotando os políticos milicianos, quase todos de extrema-direita. 

O plano para matar Brizola 

Um outro estudioso do assunto, o antropólogo Luiz Eduardo Soares e os ex-oficiais do Bope André Batista e Rodrigo Pimentel relatam um caso também emblemático de grupos de extermínio que deram origem às milícias no livro "Elite da Tropa". 

Os autores conduzem o leitor a um impressionante mergulho no cotidiano de violência e corrupção da Polícia Militar fluminense, utilizando muitos pseudônimos. 

Os autores do livro rrelatam o dia em que policiais, incomodados com o fato de o então governador do Rio Leonel Brizola ter combatido grupos de extermínio da capital e Baixada Fluminense, inclusive prendendo policiais que participavam do crime organizado e desmantelando estes grupos, decidiram que era preciso assassinar o político gaúcho  

"Vamos matar o Brizola", disse um policial em diálogo com outro colega do Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro.

Era um plano minucioso traçado dentro do Bope para eliminar o então governador Leonel Brizola (1922-2004), cuja política de direitos humanos nas comunidades pobres teve forte oposição no meio policial, até porque reduzia a possibilidade do "arrego", expressão popular para designar as propinas que policiais corruptos recebem do crime organizado.  

O tratamento dado pelo aparato militar do Estado em bairros de elite, seguindo estritamente aa regras da Lei, passaria a ser exigido pelo governo brizolista também nas favelas e periferias. 

Direitos Humanos 

A guinada na política de segurança, sob o comando de Brizola e do advogado e professor de Direito, Nilo Batista, que foi vice-governador no segundo governo Brizola, foi de 360⁰ graus: de uma polícia que no seio da ditadura militar matava negros e pobres sob total sigilo e a concessão e muitas vezes o financiamento das classes dominantes para a busca de um novo mundo, com uma polícia que pudesse ser cidadã, respeitada mas não temida pela população, garantindo direitos humanos fundamentais aos mais pobres, numa ação política até então inédita no Brasil, o que teve um alto prejuízo eleitoral para Brizola. A política de direitos humanos do líder trabalhista passou a enfrentar o ódio das camadas mais ricas e da classe média do Rio e uma campanha sistemática da grande mídia, especialmente das Organizações Globo. O acusavam de "defender bandido", a generalização com que as elites tratam os moradores das favelas. Essa corrente de pensamento, no seio da extrema-direita, tornou-se ideologia e no imaginário social "direitos humanos " viraram palavrão. 

Quando construiu os CIEPs junto com Darcy Ribeiro, o projeto incluía dois casais com um policial ou bombeiro morando numa das duas amplas e confortáveis casas construídas no terraço das escolas em horário integral. 

Aos casais, que moravam sem custos, cabia a tutela de crianças socialmente vulneráveis. Era mais um passo para criar a imagem da polícia cidadã. 

"O bom policial não é o que mata, mas o que prende", dizia o governador. 

A cilada do Bope começava a ser traçada. Iriam matar Brizola quando ele descesse de seu apartamento na Avenida Atlântica, em Copacabana. 

"Já temos os mapas dos deslocamentos diários dele”, argumentou o policial que tentava convencer o colega a participar do plano. Dizia que se tratava de uma operação coletiva, com a qual “a nata do Bope” estava de acordo. Teve reunião e tudo para planejar o ataque. 

Mas por sorte ou desígnio de Deus, no dia marcado para acontecer, Brizola não desceu, como costumava fazer para comprar seu jornal na banca mais próxima. 

Um dos autores do livro presenciou o diálogo sobre o plano. 

– Matar Brizola? Você está louco.

– Não sou eu, somos nós. Podemos estar loucos, mas não somos covardes...

O policial surpreso com a ideia ficou espantado ao ouvir do colega e ele estava, ao planejar matar o governador do Estado, "agindo dentro da Lei". 

Era o espírito de uma polícia acostumada na ditadura militar a executar "subversivos" e pobres das favelas e considerar que estava, com essas ações criminosas, agindo "em defesa da pátria, da família e da ordem pública". Este mesmo ideal que culminou, primeiro, nos grupos de extermínio, depois nas milícias dominando bairros, favelas, comunidades e a política estadual e finalmente a nível federal com a vitória do bolsonarismo em 2018.

"Sendo uma missão de segurança máxima, quem hesitar dança (é morto)”, ameaçou o policial autor da ideia. 

Só o povo pode mudar isso

O plano para matar Brizola falhou. O de Marielle,  não. As milícias triunfaram sobre a política de direitos humanos. E deu no que a população está assistindo e vivendo nos dias atuais: o crime organizado das milícias e do tráfico de drogas dominaram a capital, a Baixada Fluminense e até algumas regiões do interior do Estado. Das escolas em horário integral só restaram o prédio projetado por Darcy Ribeiro. E a milícia tomou o governo e o Parlamento do Estado. A Alerj não é mais a Casa do Povo. Tem dono. 

Agora, como deixa claro o sociólogo, crê o antropólogo e sonhou Leonel Brizola, só o povo do Rio de Janeiro pode libertar as cidades e o Estado do Rio de Janeiro do domínio da política pela extrema-direita miliciana. 

A decisão da população é nas urnas. O destino de um estado cujos poderes institucionais estão nas mãos das milícias e o caos, a violência e a barbárie imperam, só pode ser mudado pelo voto dos eleitores e pela vontade democrática da sociedade.

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